Prefeitura de Laranjeiras do Sul

STF mirou no coração, e operou o cérebro

Na sanha por controlar as redes sociais, os ministros do Supremo acabaram desarrumando o que tinha sido arrumado pelo Marco Civil da Internet

O Brasil ainda tenta entender o que exatamente o Supremo Tribunal Federal (STF) fez ao mudar o regime de regulação das redes sociais, impondo às plataformas responsabilidade sobre os conteúdos publicados, mesmo antes de mediação judicial.

Uma das maiores referências brasileiras no assunto, Ronaldo Lemos, que atuou como membro do Conselho de Supervisão da Meta (Facebook), resumiu assim a alegada tentativa dos ministros de civilizar o ambiente virtual no país:

A intervenção do STF é como alguém que vai operar o coração e ao sair da cirurgia descobre que foi operado também no pâncreas, no fígado, nas pernas e no cérebro. 

O STF foi chamado para resolver um problema específico e passou a faca geral.”

Isso ocorreu porque o STF claramente não tem expertise para lidar com o assunto, como expõe análise publicada por Lemos

Além disso, como alertou O Antagonista, os ministros também não têm muita familiaridade com o conceito de liberdade de expressão.

“Regime de responsabilidade confuso”

“Com a decisão do STF o Brasil passa a ter um regime de responsabilidade confuso. 

São 4 tipos de responsabilidade que o Supremo definiu. Como diz a oração da serenidade: ‘Dai-nos a sabedoria para distinguir’ qual será o regime aplicável em cada caso concreto”, criticou o especialista.

Lemos destacou que a decisão do STF “aplica-se tanto às Big Techs quanto a pequenos e médios provedores de aplicação”, acrescentando: 

“Do Google ao Reclame Aqui, passando por fóruns e e caixas de comentários, todos estão abrangidos”.

Para aqueles que estão comparando o novo regime de regulação brasileiro ao europeu, o especialista lembrou que “no DSA [Lei de Serviços Digitais] europeu, o regime de responsabilização análogo só se aplica a plataformas com mais 45 milhões de usuários mensais”, enquanto, no Brasil, a regra “será para tudo na internet”.

“Muitas incertezas”

Lemos segue na análise, destacando que “há muitas incertezas”:

“Por exemplo, qual é o regime dos marketplaces? A decisão apenas diz que se aplicará o Código de Defesa do Consumidor, o que não esclarece nada.

A decisão abrange também ‘chatbots’, que dizem respeito a inteligência artificial. 

O que é estranho. Chatbots são tecnologias diferentes de redes sociais de conteúdo gerado por usuário. Isso cria ainda mais imprevisibilidade.

O STF diz que a decisão afasta a ‘responsabilidade objetiva’. No entanto, cria um regime de ‘presunção de responsabilidade’ que parece ser a mesma coisa. Quais as diferenças? Não está claro.

A decisão pode levar à remoção massiva de conteúdos na internet, bastando notificação extrajudicial. 

Há obrigação de remover todos os conteúdos iguais. E se o conteúdo estiver sendo postado para ser criticado, o que é legítimo. Vai ser removido também?”

Liberdade de expressão

Lemos destacou ainda que uma intervenção como a feita pelo STF — que considerou parcialmente inconstitucional o artigo 19 do Marco Civil da Internet e convidou, por assim dizer, o Congresso Nacional a tratar do assunto — requer a aprovação de uma lei:

"regime anterior, se alguém reclamava de um conteúdo ele ficava no ar até a decisão judicial. 

Era um regime de ‘na dúvida, pró liberdade de expressão’. Agora isso se inverte em 3 dos 4 regimes. 

O conteúdo será primeiro tirado do ar. Caberá a quem fez o post acionar o judiciário para colocá-lo de volta. O regime é ‘na dúvida, pró remoção’.

Minha preocupação é que uma intervenção dessa envergadura requer uma lei. 

Não sou eu que digo isso, mas o Pacto dos Direitos Civis e Políticos, que é um tratado de direitos humanos do qual o Brasil é signatário e tem força supralegal no país desde 1992. 

Ele diz claramente: ‘O exercício do direito da liberdade de expressão poderá estar sujeito a certas restrições, que devem, entretanto, ser expressamente previstas em lei’.

Vai ser difícil sustentar, à luz do Pacto, que as mudanças feitas pelo STF foram feitas ’em lei’.”

Únicos acertos

Segundo o especialista, o STF só acertou em dois pontos: na “manutenção das questões sobre honra (calúnia, injúria etc.) sob o artigo 19” e na “expansão da lista do artigo 21, com remoção sem ordem judicial, para questões graves e objetivas, como proteção das crianças e adolescentes, e terrorismo”.

“Mesmo sobre esses, pode prevalecer o entendimento de que seria necessária uma lei para que as mudanças fossem feitas”, ponderou Lemos.

Enfim, na sanha por controlar as redes sociais, os ministros do Supremo acabaram desarrumando o que tinha sido arrumado pelo Marco Civil da Internet.

E eles o fizeram mesmo após ouvir dos representantes de plataformas como Mercado Livre e Wikipédia que não estavam decidindo apenas sobre redes sociais.

Diante do ímpeto e da disposição dos ministros do STF, resta ao país apenas torcer para que o estrago não tenha sido tão grande a ponto de inviabilizar negócios.

Fonte: O Antagonista

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